A arma de guerra chamada Barbie
Por Paula Sibila
A boneca criada em 1958 é pioneira na configuração de um modelo corporal que talvez seja o mais tirânico da história ocidental
Uma temporada após a outra, desfiles de moda acendem seus holofotes nas mais diversas cidades do mundo. Olhos fascinados (ou entediados) assistem aos vaivéns das passarelas, onde as modelos que servem de “cabide para as roupas” costumam despertar mais curiosidade que as extravagantes vestes em exibição.
O corpo das modelos exerce um magnetismo não isento de polêmicas, tais como os escândalos e burburinhos ligados à anorexia, mas seu brilho nunca diminui. Elas continuam atraindo os olhares, surpreendentemente idênticas umas às outras, e todas muito diferentes das comuns mortais que as admiram em silêncio -e que gostariam de se parecer com elas. Exércitos de mulheres de todas as procedências querem copiar esses corpos-modelos que tanto se assemelham entre si, como numa clonagem universal de um protótipo que há décadas permanece incólume: a Barbie.
Embora já esteja ficando quase velha, essa boneca esguia e eternamente jovem continua sendo o ícone de um padrão de beleza dos mais insistentes. Tendo habitado a infância das meninas do mundo inteiro há quase meio século, a Barbie tornou-se um verdadeiro clássico na imposição das leis do “corpo bom” em nossa sociedade. Todo um baluarte pedagógico, a famosa boneca é uma pioneira na configuração de um modelo corporal que provavelmente seja o mais tirânico da história ocidental.
Pois as medidas da Barbie são humanamente impossíveis: se os 29 cm de plástico oco que a conformam fossem transformados em carne feminina, para conservar as proporções de sua silhueta curvilínea demandariam uma altura de 2m13 e as seguintes medidas de busto, cintura e quadris: 96-45-83 cm.
Os cálculos indicam que uma mulher com essa contextura pesaria menos de 50 kg, portanto não possuiria a quantidade de gordura corporal suficiente para ter ciclos menstruais regulares e não conseguiria nem sequer andar. Isto significa que até mesmo as modelos que mais aproximam seus corpos dessa imagem ideal ainda permanecem longe da “boneca perfeita”. As medidas habituais das profissionais da passarela são 1m75 de altura e os clássicos 90-60-90.
Quanto às mulheres “reais”, a meta está bem mais longe dessa harmonia numérica: para ter as formas da Barbie, uma mulher ocidental de porte médio deveria esticar sua altura corporal em 40 cm, extrair uns 25 cm da sua cintura e uns 20 cm dos quadris e, além disso, acrescentar mais alguns centímetros nos seios.
Há, ainda, um dado bombástico: em 1958, quando a esposa do dono da empresa Mattel teve a idéia genial de fabricar esse novo brinquedo, o design da Barbie foi encomendado a um especialista com um currículo expressivo. Trata-se de Jack Ryan, um engenheiro, que antes de chefiar o departamento de pesquisa e desenvolvimento da Mattel, também trabalhou para o Pentágono e para a empresa Raytheon, fabricante de equipamento bélico.
Nesse emprego anterior, o engenheiro foi responsável pelo design dos mísseis Sparrow e Hawk. Sabe-se que os brinquedos nunca são artefatos neutros ou “inocentes”; ao contrário, eles propõem “estilos de vida” capazes de influenciar uma geração inteira -ou várias, como é o caso da bem-sucedida boneca norte-americana. Nesse sentido, a Barbie não é uma trivial mercadoria, e tampouco é apenas uma boneca. Ela é, sobretudo, um tipo de corpo: um poderoso modelo corporal que com ela nasceu e com ela ainda se desenvolve. Ela é, aliás, uma verdadeira arma de guerra, cujo efeito consiste na radiação do “corpo perfeito” por todos os cantos do planeta.
A história da Barbie é muito eloqüente. Ela foi a primeira boneca cujo corpo ousou imitar as formas de uma mulher adulta, enquanto os brinquedos mais tradicionais destinados às meninas sempre reproduziram a figura do bebê ou de uma criança. “Be anything”, promete o slogan da Barbie: seja o que desejar, você é livre para inventar seu próprio destino, pode escolher o tipo de trabalho que irá desempenhar quando for adulta. Faça o que você quiser, desde que a sua aparência seja como deve ser; isto é, o mais parecida possível com a boneca impossível.
Pois a Barbie encarna duas tendências aparentemente contraditórias: por um lado, ilustra a ampliação da autonomia e das liberdades de escolha para as mulheres; por outro lado, também representa a ardilosa transformação do corpo em uma mercadoria que deve ser constantemente aperfeiçoada. Duas tendências que se aprofundaram nas últimas décadas, e não há dúvidas que a própria Barbie contribuiu para sua expansão. Por isso, quando as meninas crescem e não conseguem atingir nem o sucesso e nem o talhe prometidos na infância, costumam recorrer a consolos mais acessíveis para aliviar suas frustrações: as modelagens do bisturi, por exemplo, ou então os antidepressivos -que um jargão mais antiquado chamaria de barbitúricos.
Não deixa de ser significativo, portanto, que esta altíssima loira de silicone tenha sido lançada em 1959, prenunciando não apenas a “liberação feminina” que logo viria, mas também a popularização das modelos hipermagras que seguiram o exemplo da manequin Twiggy. Com suas inéditas medidas enxutas e sua aparência “desnutrida”, essa modelo britânica escandalizou o mundo quando apareceu pela primeira vez nas páginas da revista “Vogue”, em 1965.
No entanto, apesar das convulsões iniciais, suas formas descarnadas logo conquistaram tanto o público como os mercados, e hoje nem suas medidas nem seu aspecto causam espanto algum. Ao contrário, parecem perfeitamente “normais”. Tanto, que seria difícil identificar a magricela Twiggy se ela desfilasse em qualquer “fashion week” do planeta.
Na época do seu lançamento, porém, há mais de quatro décadas, até a revista que a descobrira admitiu o choque da novidade que tais formas corporais apresentavam. A “Vogue” viu-se obrigada a publicar a seguinte advertência junto às fotografias: “Suas pernas fazem pensar que ela não tomou suficiente leite quando era bebê, e seu rosto mostra a expressão que deviam ter os habitantes de Londres durante a guerra”.
Paralelamente a estes dois fenômenos emblemáticos -a aparição da Barbie em 1959 e de Twiggy em 1965-, que marcaram os primeiros passos no advento deste novo ideal do corpo feminino, o mundo ingressava em uma nova era. Nesse ambiente transtornado pelas revoltas da juventude e pelas reivindicações feministas, vivenciava-se uma flexibilização da rigidez moral que até então tinha constrangido os relacionamentos e costumes.
Nesse quadro, começava a agonizar a velha “cultura da intimidade”, que teve seu auge no século 19 e na primeira metade do 20, e deu à luz às subjetividades interiorizadas da modernidade. Um mundo, enfim, no qual os sofrimentos eram vivenciados como conflitos interiores (pessoais e privados), muitas vezes provocados pela necessidade de “reprimir” os desejos individuais em face à severa moral vigente.
Diante da agonia desse universo, na segunda metade do século passado, começou a despontar um novo regime de constituição das imagens corporais e dos “modos de ser”, um movimento histórico extremamente complexo que ainda está em andamento, e que deslancharia uma crescente exteriorização do eu. Desse processo participaram ativamente aquelas duas personagens femininas: tanto a boneca Barbie como o corpo-modelo cuja linhagem Twiggy inaugurara.
Constantemente se renovam as roupas, os estilos e os incontáveis acessórios que a empresa Mattel comercializa há 48 anos sob a lucrativa marca Barbie, mas a silhueta da boneca permaneceu praticamente idêntica ao longo de todo esse tempo. Em 1965, suas pernas se tornaram flexíveis; em 1968, o rosto ganhou um aspecto ainda mais jovem, com longos cílios contornando seus enormes olhos azuis. Depois, os cabelos lisos cresceram ainda mais e o corpo ganhou maior mobilidade.
Em 1997, quando a moça já era bem mais que uma balzaquiana, os fabricantes resolveram responder às crescentes críticas acerca da influência negativa que estaria exercendo sobre as meninas do mundo inteiro, alastrando um padrão corporal inatingível e contribuindo, dessa maneira, para a “epidemia” de distúrbios alimentares e transtornos da imagem corporal. Assim, nos exemplares mais recentes, tanto a cintura como os quadris da boneca engrossaram levemente, na tentativa de tornar seu corpo um pouco mais “realista”, enquanto os seios foram diminuídos. De todo modo, as mudanças são bastante sutis, e a Barbie continua sendo a Barbie.
A verdade é que o mercado desaconselha alterações mais profundas nessa esbelta figura, que é líder de vendas entre todas as bonecas jamais criadas: somente no ano em que virou quarentona, faturou US$ 2 bilhões. Vendem-se anualmente mais de 100 milhões de exemplares em 140 países: a cada segundo, três meninas deste planeta ganham um novo clone. Mas tais números se referem apenas à marca oficial; esquecendo as incontáveis imitações que, a rigor, cumprem idêntica função. Existe até um dado tão inútil como ilustrativo: se colocássemos todas as Barbies vendidas nos primeiros 30 anos -isto é, apenas até 1989- enfileiradas da ponta das madeixas aos curvos pés, seria possível dar quatro vezes a volta ao mundo. Ninguém pode dizer que seja pouca coisa.
É claro que não se trata apenas de uma mercadoria a mais, porém de um produto intensamente fetichizado. Não por acaso, esta boneca já foi tema de sérios estudos acadêmicos e protagonizou exposições em museus e centros culturais. Sob o nome de “complexo de Barbie”, ainda, conhece-se a síndrome que leva algumas mulheres a recorrer à cirurgia plástica e outras técnicas afins para provocar drásticas mudanças em seus corpos, tendentes a se parecerem com a loiríssima boneca.
Algumas o fazem explicitamente, e chegam a ficar famosas por causa disso: escrevem livros sobre sua cruzada, contam suas experiências na televisão e mostram orgulhosas os resultados. Um exemplo é Cindy Jackson, cujo site na internet dispensa comentários: http://www.cindyjac kson.com. Mas não é preciso evocar esses extremos: são inúmeras as mulheres que perseguem essa meta sem explicitá-lo, por isso é tão comum encontrar êmulas anônimas da Barbie andando pelas ruas de qualquer cidade.
Como uma prova da vigorosa influência cultural desse modelo, não surpreende que os padrões de beleza vigentes em nossa sociedade tenham mudado radicalmente nos últimos 50a anos. Junto com esses protótipos ideais, também foi se metamorfoseando a silhueta das mulheres reais de todo o planeta. Basta citar apenas um exemplo bastante elucidativo: em 1951, a moça que ganhou o concurso de Miss Suécia media 1m71 de altura e pesava 68,5 kg; pouco mais de três décadas depois, sua colega de 1983 media 1m75 e pesava 49 kg.
Entre uma e outra rainha de beleza escandinava, houve uma verdadeira barbierização dos padrões. Em termos médicos, o índice de massa corporal (IMC) da primeira era de 23,4, um valor que ainda é tido como normal, enquanto o da segunda é de 16, e já está bem aquém do mínimo considerado saudável.
As manequins sempre foram magras: algumas décadas atrás, quando ainda não eram celebridades e nem constituíam o sonho que toda menina quer encarnar quando crescer, pesavam 8% menos que a média da população, mas atualmente essa diferença é de 23%. No ano passado, ecoando uma série de notícias trágicas sobre mortes de modelos que sofriam de anorexia (entre elas, a brasileira Ana Carolina Reston), os organizadores da “fashion week” de Madri impediram a participação de todas aquelas profissionais cujo índice de massa corporal fosse inferior a 18. Para uma jovem de 1m75 de altura, esse valor implica um peso de 56 kg.
Proibições semelhantes foram adotadas em desfiles realizados em outros países, mas a decisão foi polêmica e muito criticada, inclusive por alguns médicos, que sublinharam a ineficácia de utilizar apenas um indicador isolado e arbitrário. De todo modo, sabe-se que a grande maioria das modelos atuais ficaria desempregada se a nova regra se generalizasse, pois estima-se que seu IMC oscile entre 17 e 17,5, podendo chegar até 15,6 -quando os parâmetros médicos continuam a indicar que o valor “normal” repousa entre 18,5 e 25.
Confirmando esse brusco emagrecimento e alongamento ocorrido nas últimas décadas, tanto dos padrões corporais considerados ideais como das medidas reais dos corpos-modelo, uma revista afirmou que as medidas de Gisele Bündchen “são perfeitas: 1m79 metro de altura e 54 kg”. Isso implica um índice de massa corporal de 16,85 -portanto, ela também seria banida dos desfiles, caso a nova regra vingasse. Cabe frisar, porém, que o perfil dessa modelo gaúcha se aproxima, bem mais que a maioria de nós, dos padrões propostos pela Barbie; contudo, ela tampouco chega a atingi-los.
Por isso, aquele engenheiro Jack Ryan -criador de mísseis para o Pentágono e da boneca Barbie para e empresa Mattel- ergue-se como uma encarnação moderna do mítico escultor grego Pigmalião, aquele que esculpira uma estátua perfeita da qual acabou se apaixonando. Afinal, o designer de equipamento bélico que forjou a boneca mais famosa do mundo foi o sexto marido da bela atriz Zsa Zsa Gabor, loira e esguia estrela de Hollywood dos anos 50 -considerada a primeira celebridade que ficou famosa apenas por causa da sua celebridade; não por acaso, foi tia-avó de outra loira hoje célebre: Paris Hilton.
O casamento do inventor e sua musa, porém, foi tão “imperfeito” que sequer durou um ano. Contudo, assim como Pigmalião, o engenheiro norte-americano acabou criando, artificialmente, uma mulher mais “perfeita” que qualquer exemplar real e carnal do gênero feminino. Seguindo os passos da sua ancestral mitológica -aquela escultura construída em marfim na Grécia Antiga-, a boneca de plástico nascida em um laboratório do século 20 logo se converteria no ícone do “corpo perfeito”, um modelo a ser desejado e imitado fervorosamente.
E uma verdadeira arma de guerra, pois tal desejo é tão ardente quanto universal, capaz de converter todas as diferenças em meros desvios com relação a essa poderosa norma. Nos últimos anos, os avanços do padrão corporal magro, esbelto e “sarado” têm enxugado, gradativamente, todas as alternativas que a diversidade étnica e cultural do mundo pré-globalizado tinha a oferecer.
Um exemplo é bem local: as famosas mulatas do carnaval carioca recorrem, cada vez mais, à lipoaspiração e ao silicone para tornear seus corpos de acordo com os moldes globais. Outro exemplo é bastante longínquo, remete àquelas silhuetas exóticas que alguma vez encantaram o pintor Paul Gauguin e foram imortalizadas em todas as cores de sua obra.
Trata-se de um arquipélago da Micronésia rodeado pelo Oceano Pacífico, onde os corpos e certos hábitos das nativas estão mudando de um modo peculiar: poucos anos depois da televisão dos Estados Unidos ter irrompido no cotidiano desse grupo de ilhas outrora isoladas, as mulheres começaram a se preocupar intensamente com o próprio peso e com o aspecto corporal, recorrendo a severas dietas e exercícios físicos. Além de mudarem os padrões de beleza ancestrais, multiplicaram- se os casos de anorexia e bulimia na região. Tudo para se parecer com ela: a Barbie.
Pois mesmo constituindo um ideal inatingível, sempre existe a possibilidade de comprar o rosto e o corpo das modelos, uma promessa que é vendida nas mais diversas embalagens: nas prateleiras de supermercados e farmácias, nas academias de ginástica e nas clínicas de tratamentos estéticos, e agora também nos “reality-shows de transformação”.
Paula Sibila
É professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia, do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS-UFF). Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ e em Saúde Coletiva pelo IMS-UERJ, é autora do livro "O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais".
Fonte: Matéria da revista Trópicos.
http://p.php. uol.com.br/ tropico/html/ textos/2891, 1.shl